Como todas as Utras que tenho feito, também esta foi recheada de experiências. Umas muito agradáveis, outras com muito desconforto misturado.
Uma das caricatas aconteceu perto do abastecimento do quilómetro 28. Íamos palmilhando as ruas de uma vila cheia de pessoas simpáticas que estavam à porta com garrafões de água, algumas também com fruta e sempre, sempre com um gesto de encorajamento, quando reparo num rapaz sentado com ar de sofrimento enquanto agarrava os quadrícipedes e sinto um impulso para o encorajar. Lembrei-me que levava ligaduras comigo e avaliando a situação, achei que podia aliviar alguma dor ao meu parceiro de jornada. Falei com ele e, mesmo em plena prova, envolvi-lhe as zonas doridas. Ele agradeceu-me imenso e eu fiquei muito feliz por ter sido de bom préstimo.
Sentindo a energia a irromper de mim, abasteço-me e ataco a subida (e que subida! 5kms com grande inclinação) com entusiasmo, conseguindo manter um andar vigoroso. Mais subia, mais o meu coração se apertava ao ver vários companheiros quase desfalecidos, tal era a imponência da inclinação. Tentei dar a todos uma palavra, perguntar se tinham água, se precisavam de ajuda. Continuava a avançar a bom ritmo, mas ia triste. Muitos participantes acusavam o desgaste causado pelos quilómetros e pelo calor do pino do Sol, uns sentando-se outros deitando-se nas poucas sombras existentes, outros completamente prostrados. Não foi bonito de se ver. Senti bastante gratidão pois podia perfeitamente ser eu a estar nos seus lugares.
Todas as Ultras são imprevisíveis. Podemos ir muito bem, mas devido à longa distância das provas, algumas horas mais tarde podemos ficar exaustos e aí, tudo pode acontecer. Vários participantes portugueses tiveram problemas gástricos, eu inclusive (perto do quilómetro 77).
E devido à extensão das provas existem demasiadas variáveis (fisiológicas, climatéricas, equipamento, abastecimentos, etc., etc.), e qualquer uma pode passar a ser determinante e provocar o abandono.
Já ia quase no 40 quando comecei a acusar um grande cansaço aliado às dores musculares que me começavam a incomodar bastante. Fui sempre abastecendo o máximo para manter o corpo o mais estável possível, pois é sempre um grande desgaste a nível fisiológico. Ainda mais com o calor que se fazia sentir. Os quilómetros rolaram até que vejo que estou a entrar em Setencil, onde seria a primeira grande paragem.
Setencil é muito bonita. Aqui, a arquitectura é muito orgânica, muita viva. O ponto alto para mim foi uma casa em que o telhado era a rocha em si, e esta ainda passava por cima da estrada e ainda cobria parte da casa em frente. Mesmo o pavimento e os restantes edifícios eram em tons e materiais que imitavam a natureza local.
Com ainda mais apoiantes (sempre incansáveis, estes espanhóis!) e a proximidade do repouso, o entusiasmo subiu e qual não é o meu espanto ao ver vários participantes a beber qualquer coisa numa esplanada, por sinal, muito tentadora. Em Setencil respirava-se uma tranquilidade muito sublime.
Neste abastecimento (55kms, com 8h de prova) troquei algum equipamento e como estive com alguns colegas, fiquei a saber que todos estavam a progredir (o Vítor recebia notícias dos outros participantes por sms), alguns com bastante ligeireza. Fiquei contente.
Ainda arranquei com um amigo de outras aventuras mas eu estava com mais dinamismo e passei novamente a palmilhar o caminho sem mais ninguém mas não sozinho (Inclusive, mais para a frente, senti de uma forma tão tangível que todos pertencíamos à Legíon).
Já caía a noite e a minha prestação ainda se iria alongar por mais umas horas. Por volta dos 65kms e numa das graaaandes descidas as dores e o cansaço já tomavam conta de mim, vivenciei mais uma lição. As dores nos joelhos eram muito fortes. Quando corria, doía; quando andava, doía e por um instante, desesperei. Na minha mente tudo girava em torno da questão: Se qualquer esforço a descer era doloroso (e não queria ir a rebolar) como é que conseguiria chegar ao fundo? Então decidi, já que de qualquer forma dói, então vou correr. Entre ais e uis lá ia descendo, até que decidi mudar um pouco a postura e, qual não é o meu espanto, quando consigo correr a descer sem ter dores! Claro que devia ter uma passada apalhaçada, mas isso não me interessava!
O entusiasmo voltou pela descoberta que fiz. Senti que parte da lição era: nada é impossível existe sempre uma forma e a outra seria que as dores (físicas ou mentais) existem para aprendermos mais rápida e profundamente. Eu só descobri a alternativa sublimando a dor, enfrentando-a, aceitando-a e vivendo-a. Durante algum tempo ainda corri sem parar, sempre apoiado pelos habitantes das casas por onde passávamos, mas o meu estômago não estava a gostar do que tinha e, mesmo depois de ter evitado várias vezes, aceitei que o tinha de esvaziar. Os participantes, sempre solícitos a apoiarem, ainda pararam mas perceberam que não era preocupante. Era apenas mais uma situação a vencer.
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